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sexta-feira, 16 de maio de 2014

A cidade e as trocas

extraído de As cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino: (grifos meus)


"Em Cloé, cidade grande, as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se veem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam.

Passa uma moça balançando uma sombrinha apoiada no ombro, e um pouco das ancas, também. Passa uma mulher vestida de preto que demonstra toda sua idade, com os olhos inquietos debaixo do véu e os lábios tremulantes. Passa um gigante tatuado, um homem jovem com cabelos brancos; um anã, duas gêmeas vestidas de coral. Corre alguma coisa entre eles, uma troca de olhares como se fossem linhas que ligam uma figura à outra e desenham flechas, estrelas, triângulos, até esgotar num instante todas as combinações possíveis, e outras personagens entram em cena: um cego com um guepardo na coleira, uma cortesã com um leque de penas de avestruz, um efebo, uma mulher canhão. Assim, entre aqueles que por acaso procuram abrigo da chuva sob o pórtico, ou aglomeram-se sob uma tenda do bazar, ou param para ouvir a banda na praça, consumam-se encontros, seduções, abraços, orgias, sem que se troque uma palavra, sem que se toque um dedo, quase sem levantar os olhos.

Existe uma contínua vibração luxuriosa em Cloé, a mais casta das cidades. Se os homens e as mulheres começassem a viver os seus sonhos efêmeros, todos os fantasmas se tornariam reais e começaria uma história de perseguições, de ficções, de desentendimentos, de choques, de opressões, e o carrossel das fantasias teria fim."


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Por algum motivo, para mim, esse trecho remete ao conceito de Self-Obliteration (auto-obliteração) da Yayoy Kusama (que estava em exposição no CCBB). Ela prega a auto-obliteração como única maneira de se "salvar" de um mundo de "desejos sórdidos", que envolvem os indíviduos em "frustrações sexuais" geradas numa sociedade reprimida. Em uma carta, ela diz que só quando essas frustrações forem ultrapassadas, conseguiremos retirar do sexo a centralidade que insiste em lhe ser atribuída e experimentaremos livremente a diversidade de temas e vivências da experiência humana na arte e no cotidiano como arte.

"Self-obliteration is achieved through the protagonist’s physical death while salvation is
made possible through surrendering  itself to the state of nothingness and void." - algo como: a auto-bliteração é alcançada por meio da morte física do sujeito que a protagoniza, enquanto a salvação só é possível por meio da rendição de si mesmo à condição de insignificância e nulidade.

Não entendo muito da Kusama, mas é um link possível. Penso bastante que a angústia gerada pela dependência emocional tem a ver com a centralidade do sexo e o hábito de encarar a vida humana fundamentalmente pela literalidade do sexo, enquanto que se o ato sexual e as relações pudessem ser encaradas como apenas um procedimento de troca energética (sem misticismo!), ele equivaleria a qualquer outro momento da experiência de presença, que é intensa e dinâmica (se estabelece na troca). Nesse sentido, qualquer produção de presença tem o potencial de provocar o êxtase, o orgasmo: ponto alto de excitação corporal. Penso assim e acredito que talvez a outra ponta da apatia (e da introversão) seja, quem sabe, o êxtase, o orgasmo. Por um orgasmo em todos os órgãos, visualizo produções de presença em grande escala: é preciso olhar dentro dos olhos e exercitar deixar-se ver em vez de ver, deixar-se ser olhado, em vez de olhar, perceber-se sendo flagrado em sua existência, como se algo, de repente, no meio de tudo que apenas flui em imensa ignorância localizasse você e se conecta-se por um instante. Isso significa o que? Por que isso parece bom? Vejo cabeças com olhos que olham pra dentro - como se não estivessem presentes - corpos que se cruzam sem se esbarrar (como em Cloé) - que nem atores, quando alguém pede 'caminhando pelo espaço'. Duros, rígidos. E se de repente, por acidente, acontece um olhar, o que acontece?

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