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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Engrossar o caldo

Temos trabalhado muito no esforço de voltar e voltar e voltar para o material tentando enxergar no que consiste isso de que estamos falando, o que suscita, de onde vem e para onde vai, por que queremos falar disso, por que importa, onde está o material na vida e como colocar vida no material. Hoje, 2 de outubro, reproduzimos (ou reperformamos, hehe) o aquecimento da terça feira, alongando e dançando, desenhando no espaço, integrando os sentidos. A percepção começa a revelar o pulso da sala, dos outros, do que está fora dali, ausência e presença criam dinâmica criativa: imaginação e corpo, perceber e aproveitar. Estamos nos adaptando ao espaço e ao desenho dos corpos indicando relação. Brincamos de perceber e oralizar o percebido. Essa ação de traduzir a percepção abstrata em palavra hoje nos fez refletir sobre a sociedade que Aglomerados traz para a cena: lugar de muita paranoia e invasão, onde as pessoas se olham e pensam milhões de coisas umas sobre as outras em suas cabeças, num trabalho silencioso que nos faz pensar sobre por que se tem tanta dificuldade de externalizar a opinião sobre o instante, o outro e o mundo. De perceber e reconhecer isso pela fala, eu aproveito aquilo que percebo.  Esse jogo que para o improviso na arte pode ser silencioso, quando falado, confesso, também aparece como uma interessante narrativa livre do movimento no presente. Eu que me sinto por vezes tão dependente do sentido, da interpretação, me sinto impulsionado pelo reconhecimento do que estou aproveitando em forma de palavra. Quando já não falo pela voz o que aproveito, mas sigo aproveitando, o foco exercido anteriormente para produzir a narração do que aproveito parece permanecer no corpo como um pulso que a cada instante reconhece o movimento, a continuação e gera consistência no gesto. Seguimos por esse percurso de sermos consistentes e entramos na coreografia pés devagar e sem a música que geralmente a acompanha. Saí para criar um olhar externo e sugeri que essa entrada na coreografia fosse gradual, na tentativa de mantermos a atmosfera de abertura, do estado de percepção a que a experiência até então construiu. Foi muito interessante perceber o impacto da ausência da trilha nessa primeira coreografia, somado à construção gradual da cena, de forma que o aglomerado está disperso, como temos experimentado frequentemente, de nos manter nos cantos, nas paredes, nas expressões do tédio enquanto o público entra e se depara com corpos que deslizam displicentemente pela paisagem. O elemento inicial da coreografia, nessa experimentação, foi gerando um crescente envolvimento dos pés no prenúncio da coisa. A insistência em caminhar pelo espaço denotava a relutância de seguir em vida, a caminhada mecânica e nonsense de seguir em frente a que, para mim, a primeira coreografia remete. Mais adiante, hoje, experimentamos usar o recuo do olhar para compor com estados de constrangimento e de uma atitude pouco comunicativa, acanhada, que diz respeito à paranoia: pensamos muito quem passa ao lado, mas não experimentamos verdadeiramente essa relação, para todos os efeitos ela é mais do domínio da fantasia do que da vida e do corpo. Isso fez compor uma atmosfera nova de tensão dos corpos em toda a primeira coreografia. Gustavo e Ricardo experimentaram bastante cada célula dessa primeira parte, buscando reconhecer lugares pelos quais transitam no interior das formas da dança: o que dá vida a um movimento coreografado? Sobre as primeiras passagens de hoje, comentamos a presença de momentos borrados em que a atitude experimental do paranada e da livre improvisação parecia fazer com que permanecêssemos no mesmo lugar de muita indeterminação que por vezes o improviso permite, sendo que pode ser que seria bom que usássemos a brincadeira do paranada justamente para exercitar a tal plenitude e sermos capazes de reconhecer a proposição de um estado que sustenta essa consistência na cena... estou supondo só... mas juntos tivemos uma percepção geral de que há distância entre a reflexão que temos do Aglomerado como um acontecimento que cada um de nós vivencia vida afora e aquilo que é vivido em cena como uma apresentação desse quadro, ou uma vivência em recorte desse quadro. Isso quer dizer, podemos ir mais a fundo nos materiais e perceber sutilezas no corpo e na imaginação que vão preencher momentos e momentos que levantamos, para cada um, trazendo de fato provocações do cotidiano, como por exemplo o fato de que ao observarmos algum desconhecido na rua, frequentemente formulamos algum dado sobre a pessoa, assim como no brincar de eu percebo que. Experimentamos então em cima de um diálogo silencioso que ocorre no interior da coreografia. Jogamos com o diálogo mental entrando em cena e saindo, com voz, sem voz, falado e em seguida apenas pensado, como a paranoia, a opinião silenciosa que cada um no Aglomerado tem sobre o mundo, muitas vezes tão particular que nem chega a ser falável, mas apenas sentida. Paira no entanto uma atmosfera de diálogo reprimida que trouxe evidente transformação na postura dos corpos a partir de então. Ricardo e Gustavo jogaram com parar de falar e só dançar, só dialogar com fala e sem dança, só um dança enquanto dialoga com o outro parado e aos poucos fomos percebendo a necessidade de evitar o enfrentamento um do outro, para então de fato recriar uma atmosfera genuína de diálogo silencioso. Experimentamos então pensar num comentário específico que ficaria ecoando na cabeça, no regime do eu percebo que, como que desejando ser falado. Vivi esse exercício no workshop com a Jo Kukathas: buscar fazer com que a palavra deseje ser falada para que antes disso ela se acomode no corpo, como opinião corporificada. Para nós, nessa primeira coreografia ela não seria falada nunca, no entanto foi fundamental para estabelecer uma relação muito curiosa entre os dois. Em príncipio parados, formularam essa opinião um sobre o outro, evitando se enfrentarem ou se invadirem com o olhar, muito mais flertando com a visibilidade do outro, percebendo o outro sem querer ser percebido. Nuances surgiram quando a dança começou e uma pulsão estava no interior da dança. Ela não precisa ser dita, mas eu diria que é muito importante que ela esteja lá. Foram incríveis momentos de muita comunicação sutil, diminuir o gesto, subtrair a caricatura, coisas de que já falamos muito e que hoje havíamos enfatizado quando discutimos a nossa progressão no tema e nesse trabalho. Morri de rir de alguns trechos da experimentação dos dois: muito estranhamento, muita possibilidade de me reconhecer neles, naquela situação com tantas componentes: de voyeurismo, de desejo reprimido, de pequena alegria, de pequena melancolia, mas que apenas vibra por baixo dos corpos que permanecem no cotidiano plano, corpos mudos amontoados no aglomerado, embora as intenções reprimidas pareçam dizer tudo. Um outro experimento a partir desse caminho veio de um desejo que tive de experimentar uma proposta de final, como falamos na terça. Pedi para que os meninos construíssem um trajeto experimental, que não precisava corresponder ao do espetáculo exatamente, mas que passasse pelos estados de cada cena em um minuto até chegar à rede, onde Gustavo e Ricardo estão juntos de novo, para mim é como se ali se reencontrassem, como na vida cotidiana: se vendo e revendo e produzindo sentido um sobre o outro aqui e ali. Em seguida passamos para um lugar em que a proposta era que começassem a conversar, a pretexto da situação de roda que temos quando vamos do bolinho de historia de un amor que vai aumentando e ficando excêntrico a ponto de que as pessoas começam a trocar alguma ideia umas com as outras. Foi o que fizeram. Em determinado momento sugeri que enquanto um fala, o outro começasse a se dispersar, ao mesmo tempo que quem fala começa a se perder do interlocutor também, falando para si e de maneira cada vez mais particular, a fala cortada, como que para o espelho. Aquele que ouvia também começa a conversar sozinho e de repente todos estão sozinhos de volta, altamente reflexivos e conversando... consigo mesmo.  O burburinho dessa cena experimentada assim ficou muito interessante, cheguei a entrar em cena também, como quem também começou o processo de falar sem se importar com quem, e pouco a pouco nos tornamos uma massa de vozes com os olhos voltados pra dentro, a cabeça baixa ou pro alto, ou para longe. Enquanto isso, um e outro vai desistindo, saindo pela porta, encostando nas paredes, se recolhendo, até que o palco fica vazio. O sujeito do Nem Aí, como a gente conversou é o cara que começa a se sacar no meio do sistema. Talvez ele comece aqui. Embora sozinho, ele está mais consciente, resta o palco vazio e já estamos em posição de encará-lo. Quem encara o espaço vazio, inevitavelmente de algum modo quer ou vai preenchê-lo. Creio que é o que fazemos no trabalho seguinte, começar a criar a partir de tanta reflexão, tanto blablabla na cabeça paranoica. Começamos a desejar a presença, mas a estrada da vida, já sabem, né, é longa e não se pode parar...

Espero ter conseguido comunicar um pouquinho da rica experiência de hoje. Temos videozinhos, depois vamos postar e incluo aqui nesta postagem. Na terça podemos trazer também essas proposições concretamente e verificá-las mais e com todo mundo, principalmente para primeira cena, como experimentar fazer sem música a primeira rodada, em seguida a música entra para segunda rodada. Também sugeri, venho pensando nisso, experimentar com o audio pout-pourri de notícias e etc. que produzimos. Enfim, ideias para tomar corpo. Beijocas.

2 comentários:

  1. Lupe, muito bom o trabalho! Importante vocês discecarem e descamarem os materias. Afinal eles são de vocês, apesar de minha mão manipuladora! Parabéns por suas provocações ao grupo! Acho que tem ajudado muito a amdurecer as idéias e o grupo. Sigam trabalhando!

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  2. Que legal ler esse texto! Esse tipo de análise amplia e fixa a experiência vivida na sala de ensaio. Consegui compreender melhor o cerne do "Aglomerados" e do "NEM AÍ" e as relações entre esses trabalhos.

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